sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Olfativo

Ao nascer, sentimos o nosso primeiro cheiro, um chimageeiro que depois de sentido a primeira vez, não sentiremos novamente: o cheiro da vida começando. A partir daí, nossa vida é marcada por vários cheiros os quais muitas vezes nem reparamos. Cheiro de comida da escolinha, que por muitas vezes é repudiado, não é a comida da mãe, veio de um lugar que nunca vimos e mesmo assim temos que comer, cheiro de areia úmida. Começamos logo cedo a gostar do cheiro de terra e mato molhados depois de uma chuva de verão, giz de cera e suco artificial de uva. Cheiro de bolo de cenoura no finzinho da tarde também é um marco importante.
O tempo vai passando e nossa memória olfativa só vai aumentando. Começamos a perceber cheiros estranhos, mais sérios. Cheiro do chão de madeira antiga da escola, a impressão que dá é de que esse cheiro vai ficar registrado nas narinas até o fim da vida. Cheiro de papel novo no começo das aulas, de tinta de caneta. Cheiro de papel de carta e lápis de cor na aula de artes.
Cheiro de escola nova umas cinco ou seis vezes, papel reciclado, encrencas. Cheiro de álcool, cheiro de cigarro. Pra uns esses cheiros prosseguem, para outros não. Cheiro de perfumes dos mais variados, chegamos a nos sentir em um desfile de fragrâncias, uma mais apelativa do que a outra.
Sentimos cheiro de perigo, de adrenalina, alguns sentem cheiro de sangue - até mais vezes do que gostariam. Cheiro de cadáver esverdeado no fundo do tanque de aço inoxidável.
Os cheiros vão variando ao longo da vida. Logo surge o compromisso, para alguns com cheiro de fim da linha, para outros, com cheiro de manhã ensolarada depois de um dia de chuva, mostrando que sempre acontece um recomeço. Algumas vezes podemos nos dar o prazer de sentir o cheiro de vida nova, apartamento novo e recém decorado, cheiro de torta de limão e domingo no sofá com a pessoa que mais queremos por perto.
E assim vamos, sentindo cheiros e provando as sensações que eles nos proporcionam, algumas boas e outras melhores, contribuindo com as nossas lembranças, com o nosso caráter e por fim, depois do cheiro de comida que já não é mais a mesma e da poeira acumulada nas pregas da poltrona sentimos um cheiro que jamais ninguém vai poder dizer como é: o da morte se aproximando e dando seu ultimato, sem confirmar que o céu tem cheiro de baunilha: já não pertencemos mais a esse mundo de perfumes inusitados.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

sublime

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E então, em um dia quente e quieto, ele chega: por mais que você tenha corrido e se negado a deixar ele entrar, por mais que tenha lembranças de outros dias e por mais que tenha cicatrizes ainda recentes (e outras nem tanto) no coração. Ele não quer saber e é teimoso feito criança alegre e invade o recinto mesmo assim.
E daí pra frente tudo vira esperança, mesmo sem querer. E daí pra trás, tudo acaba virando apenas um monte de fotografias em sépia.
Insistente, ele não vai parar de te cutucar até você assumir que sabe que ele está presente, até você se deixar levar pela correnteza e sentir os pés serem arrebatados sem a mínima dó do chão.
No começo é aquela vertigem confusa, um rodamoinho de cores e uma dor de cabeça insana por tentar se prender a algo sólido, mas enfim tudo se estabiliza e volta aos eixos, mas não da mesma forma que era: você passa a ter uma percepção melhor das coisas, porque lhe parece que o sol brilha e esquenta mais, dá pra ouvir o  barulho dos passarinhos alegres e as nuvens que até então tinham sido simples denúncia de vapor no céu, passam a ter desenhos perfeitos.
As pessoas lhe parecem mais simpáticas, ou você é mais simpático com as pessoas, que seja. O que vale é que há sempre um sorriso em você, mesmo que não haja demonstração física disso, mesmo que esse sorriso seja apenas de você para você mesmo.
E ainda tem um fator extra que melhora as coisas de uma forma quase absurda: há alguém do teu lado, alguém com as mãos entrelaçadas nas tuas, alguém que sente o mesmo que você, ou que pelo menos sente coisas muito parecidas e isso causa uma sensação tão grande de conforto, de segurança, que você jura ser capaz de fazer coisas que nunca havia cogitado em fazer só pra ter aquela pessoa cada vez mais perto, mas essa insanidade não é algo ruim.
Finalmente você pode entender o que as borboletas diziam em silêncio, porque agora você pode percebê-las e pode ver que pelo menos uma cruza o seu caminho durante o dia. Finalmente você pode entender o poeta inebriado que diz "De tudo ao meu amor serei atento..." que antes você achava tão piegas e ultrapassado. As coisas acabam tornando-se muito mais fáceis de serem entendidas e muito mais simples também. Você sorri porque está feliz, você sorri porque encontrou a
felicidade.
E mesmo que você seja louco desestabilizado, incompreensível e alguém cheio de manias e dúvidas, as mãos continuam corajosamente entrelaçadas nas tuas, os abraços continuam sendo apertados como se não houvesse defeito algum, como se não importasse nem um pouco a sua neurose que vem nos dias ímpares e múltiplos de 3, porque mesmo ela sendo uma baita esquisitice, surge algo que chama aceitação, misturada a uma grande parcela de carinho. Um carinho que você não sabe nem explicar porque existe, porque há tantos motivos em você para que o outro deseje o contrário, mas este contesta todos os fatores negativos e como que em desafio, permanece forte em seu lugar.
Isso sem falar na felicidade que invade o seu lar, invade os seus olhos - eles denunciam, pelo brilho, que agora você é uma pessoa plenamente feliz -, é quase um escândalo o que acontece com você, finalmente dá para você contar sobre os seus planos, dá para falar besteiras sem medo, dá pra ter a cara amassada de sono ou inchada de chorar e para usar uma camiseta que seja parecida com um pijama e ainda assim ter um olhar de admiração acompanhando cada passo que você dá.
Mas não adianta ficar falando aos quatro ventos sobre o sentimento - mesmo que dê vontade de falar sem parar - porque ainda há, no mundo, pessoas que não sentiram o mesmo que você, mas pouco te importa porque no momento, aquelas mãos continuam atadas firmemente às suas.